quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Fotos da Vizinha Faladeira - 2011



O que é o carnaval? Um início de resposta por palavra


 Segue abaixo um artigo ou parte de monografia, que expus no curso de mestrado do Programa de Ciência da Literatura da UFRJ. Apresento o conceito inicial do carnaval, em literatura, através do primeiro parágrafo do conto Cordões de João do Rio.

“Era em plena Rua do Ouvidor” e o narrador sugere a multidão, como o tato de uma palavra-fantasma com a frase seguinte: “Não se podia andar.” Na segunda frase, a multidão, antes projeção metonímica da palavra anterior, aparece como palavra e reduz-se a toda a extensão de seu significante. Porém, uma vez já denotada, não se pode destacar a trivialidade da redundância – o sentido mais autêntico está no predicado verbal “apertava-se, sufocada.” –, o além de si. Saímos da segura casa da palavra e vamos em mente para a rua interpretativa do como, do por que ou do para que. Isto nos faz revisitar o título “Cordões”; são os cordões do carnaval, e a música em epígrafe “Oh! Abre ala! / Que eu quero passá / Estrela d’Alva / Do Carnavá!” nos remete à “congestão” dos foliões. A narrativa segue como os olhos extasiantes que fotografam uma multidão em movimentos perigosos e intensos e está disposta a observar cada detalhe, mas já perdendo o anterior pela persuasão do seguinte. Os sujeitos sobrepujam os homens na linguagem desse narrador do carnaval, e o que se diz sobre eles são de seus cotovelos que tentam penetrar uma entrada no meio da aglomeração. “Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos,...”: os homens se tornam sujeito, uma distância semântica determinada pelo hiperônimo, da mesma forma que a multidão está para o eu absorvido e, mais ainda, de um algo para tudo o que se narra e que fica escondido no texto e na multidão. Pessoas são retratadas a fazer alguma coisa:  “...mulheres afogueadas, crianças a gritar,...”. Das excentricidades, o termo genérico “tipos”, também por hiperonímia vulgar assim como o citado “sujeitos”, que faziam coisas muito indeterminadas: “...tipos que gritavam pilhérias.” Que pilhérias? Para o movimento extasiante e selvagem das ruas dos dias de carnaval basta a superficialidade dos sentidos. As primeiras quatro frases da obra transmitem uma tendência de interpretação de todo o parágrafo do texto como a presença de frações que evocam um todo perdido ou desprezado.
Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do Largo de São Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum , poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:
Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E bataião navá!


Rob Beto

Fotos do Arranco - 2011