Entretanto, os Destemidos tinham parado também. Vinham em sentido contrário, fazendo letras complicadas pela rua fofa de papel policromo, sob a ardência das lâmpadas e dos arcos, o grupo da Rainha do Mar e o grupo dos Filhos do Relâmpago do Mundo Novo. Os da Rainha cantavam em bamboleios de onda:
Moreninha bela
Hei-de te amar
Sonhando contigo
Nas ondas do mar.
Os do Relâmpago, chocalhando chocalhos, riscando xequedês, berravam mais apressados:
No triná das ave
Vem rompendo a aurora
Ela de saudades
Suspirando chora.
Sou o Ferramenta
Vim de Portugá
O meu balão
Chama Nacioná.
Senhor Deus! Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice. O fragor porém aumentava, como se concentrando naquele ponto, e, esticando os pés, eu vi por trás da Rainha do Mar uma serenata, uma autêntica serenata com cavaquinhos, violões, vozes em ritornelo sustentando fermatas langorosas. Era a Papoula do Japão:
Toda a gente pressurosa
Procura flor em botão
É uma flor recém-nascida
A papoula do Japão.
Docemente se beijava
Uma... rola
Atraída pelo aroma
Da... papoula...
— Vamos embora. Acabo tendo uma vertigem.
— Admira a confusão, o caos ululante. Todos os sentimentos, todos os fatos do ano revira volteiam, esperneiam, enlanguescem, revivem nessas quadras feitas apenas para acertar com a toada da cantiga. Entretanto, homem frio, é o povo que fala. Vê o que é para ele a maior parte dos acontecimentos.
— Quantos cordões haverá nesta rua?
— Sei lá — quarenta, oitenta, cem, dançando em frente à redação dos jornais. Mas, caramba! olha o brilho dos grupos, louva-lhes a prosperidade. O cordão da Senhora do Rosário passou ao cordão de Velhos. Depois dos Velhos os Cucumbis. Depois dos Cucumbis os Vassourinhas. Hoje são duzentos.
— É verdade, com a feição feroz da ironia que esfaqueia os deuses e os céus — fiz eu recordando a frase apologista.
— Sim, porque a origem dos cordões é o Afoxé africano, dia em que se debocha a religião.
— O Afoxé? insisti, pasmado.
— Sim, o Afoxé. É preciso ver nesses bandos mais do que uma correria alegre — a psicologia de um povo. O cordão tem antes de tudo o sentimento da hierarquia e da ordem.
— A ordem na desordem?
— É um lema nacional. Cada cordão tem uma diretoria. Para as danças há dois fiscais, dois mestres-sala, um mestre de canto, dois porta-machados, um achinagú, ou homem da frente, vestido ricamente. Aos títulos dos cordões pode-se aplicar uma das leis de filosofia primeira e concluir daí todas as idéias dominantes na populaça. Há uma infinidade que são caprichosos e outros teimosos. Perfeitamente pessoal da lira: — Agora é capricho! Quando eu teimo, teimo mesmo! Nota depois a preocupação de maravilhar, com ouro, com prata, com diamantes, que infundem o respeito da riqueza — Caju de Ouro, Chuveiro de Ouro, Chuva de Prata, Rosa de Diamantes, e às vezes coisas excepcionais e únicas — Relâmpago do Mundo Novo. Mas o da grossa população é a flor da gente, tendo da harmonia a constante impressão das gaitas, cavaquinhos, dos violões, desconhecendo a palavra, tal vez apenas sentindo-a como certos animais que entendem discursos e sofrem a ação dos sons. Há quase tantos cordões intitulados Flor e Harmonia, como há Teimosos e Caprichosos. Um mesmo chama-se Flor da Harmonia, como há outro intitulado Flor do Café.
— É curioso.
— Não te parece? Vai-se aos poucos detalhando a alma nacional nos estandartes dos cordões. Oliveira Gomes, esse ironista sutil, foi mais longe, estudou-lhes a zoologia. Mas, se há Flores, Teimosos, Caprichosos e Harmonias, os que querem espantar com riquezas e festas nunca vistas, há também os preocupados com as vitórias e os triunfos, os que antes de sair já são Filhos do Triunfo, da Glória, Vitoriosos das Chamas, Vitória das Belas, Triunfo das Morenas.
— Acho gentil essa preocupação de deixar vencer as mulheres.
— A morena é uma preocupação fundamental da canalha. E há ainda mais, meu amigo, nenhum desses grupos intitula-se republicano, Republicanos da Saúde, por exemplo. E sabe por quê? Porque a massa é monarquista. Em compensação, abundam os reis, as rainhas, os vassalos, reis de ouro, vassalos da aurora, rainhas do mar, há patriotas tremendos e a ode ao Brasil vibra infinita.
Neste momento tínhamos chegado a uma esquina atulhada de gente. Era impossível passar. Dançando e como que rebentando as fachadas com uma "pancadaria" formidável, estavam os do Prazer da Pedra Encantada e cantavam:
Tanta folia, Nenê!
Tanto namoro;
A Pedra Encantada ai! ai!
Coberta de ouro!
E o coro, furioso:
Chegou o po o, Nenê Floreada
É o pessoal, ai! ai!
Da Pedra Encantada.
Mas a multidão, sufocada, ficava em derredor da Pedra entaipada por outros quatro cordões que se encontravam numa confluência perigosa. Apesar do calor, corria um frio de medo; as batalhas de confete ces savam; os gritos, os risos, as piadas apagavam-se, e só, convulsionando a rua, como que sacudindo as casas, como que subindo aos céus, o batuque confuso, epilético, dos atabaques, "xequedés", pandeiros e tambores, os pancadões dos bombos, os urros das cantigas berradas para dominar os rivais, entre trilos de apitos, sinais misteriosos cortando a zabumba da delirante como a chamar cada um dos tipos à realidade de um compromisso anterior. Eram a Rosa Branca, negros lentejoulantes da rua dos Cajueiros, os Destemidos das Chamas, os Amantes do Sereno e os Amantes do Beija-flor! Os negros da Rosa, abrindo muito as mandíbulas, cantavam:
No largo de São Francisco
Quando a corneta tocou
Era o triunfo Rosa Branca
Pela Rua do Ouvidô.
Os Destemidos, em contraposição, eram patriotas:
Rapaziada, bate,
Bate com maneira
Vamos dar um viva
À bandeira brasileira
Os Amantes do Sereno, dengosos, suavizavam:
Aonde vais, Sereno
Aonde vais, com teu amor?
Vou ao Campo de Sant'Ana
Ver a batalha de flô.
E no meio daquela balbúrdia infernal, como uma nota ácida de turba que chora as suas desgraças divertindo-se, que soluça cantando, que se mata sem compreender este soluço mascarado, esta careta de arlequim choroso elevava-se do Beija-Flor:
A 21 de janeiro
O Aquidabã incendiou
Explodiu o paiol de pólvora
Com toda gente naufragou.
E o coro:
Os filhinhos choram
Pelos pais queridos.
As viúvas soluçam
Pelos seus maridos.
Era horrível. Fixei bem a face intumescida dos cantores. Nem um deles sentia ou sequer compreendia a sacrílega menipéia desvairada do ambiente. Só a alma da turba consegue o prodígio de ligar o sofrimento e o gozo na mesma lei de fatalidade, só o povo diverte-se não esquecendo as suas chagas, só a populaça desta terra de sol encara sem pavor a morte nos sambas macabros do carnaval.
— Estás atristado pelos versos do Beija-Flor? Há uma porção de grupos que comentam a catástofre. Ainda há instantes passou a Mina de Ouro. Sabes qual é a marcha dessa sociedade? Esta sandice tétrica:
Corremos, corremos.
Povo brasileiro
Para salvar do Aquidabã
Os patriotas marinheiros.
Isto no carnaval, quando todos nós sentimos irreparável a desgraça. Mas o cordão perderia a sua superioridade de vivo reflexo da turba se não fosse esse misto indecifrável de dor e pesar. Todos os anos as suas cantigas comemoram as fatalidades culminantes.
Neste momento, porém, os Amantes do Sereno resolveram voltar. Houve um trilo de apito, a turba fendeu-se. Dois rapazinhos vestidos de belbutina começaram a fazer "letra" com grandes espadas de pau prateado, dando pulos quebrando o corpo. Depois, o achinagú, ou homem da frente, todo coberto de lentejoulas, deu uma volta sob a luz clara da luz elétrica e o bolo todo golfou — diabos, palhaços, mulheres, os pobres que não tinham conseguido fantasias e carregavam os archotes, os fogos de bengala, as lâmpadas de querosene. A multidão aproveitou o vazio e precipitou-se. Eu e meu amigo caímos na corrente impetuosa.
Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do Deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres, e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável...
Toda a rua rebentava no estridor dos bombos. Outras canções se ouviam. E, agarrado ao braço de meu amigo, arrastado pela impetuosa corrente aberta pela passagem dos Amantes do Sereno, eu continuei rua abaixo, amarrado ao triunfo e à fúria do cordão!...
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