segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A linguagem pode refletir o carnaval como se fosse um desenho?

Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do Largo de São Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum , poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:
Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E bataião navá! 1

No texto de João, todas as imagens se dão em parte e há ainda uma intenção concreta de transmitir uma realidade completa. O narrador, que parte a explicitar o lugar, uma característica literária brasileira de regionalizar o ambiente – aqui, o urbano carioca – , deixa guiar-se pelo recorte da fotografia da indeterminação quando passa aos foliões: “Era provável que do Largo de S. Francisco à Rua Direita... rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos,...”. Bombos e tamborins, expressos com a materialidade da palavra; pessoas, muito indeterminados pelo quantitativo das cinquenta mil. Outro detalhe desta frase é o agrupamento das coisas às pessoas, dando a compreensão que se conflui como a mesma coisa num mesmo nível conceitual. As pessoas se cortam com as coisas e que não se mostra a integral expressão de si, mas em parte com a parte das coisas: “...zabumbassem cem bombos , gritassem cinqüenta mil pessoas.” Percebemos como da língua imposta ao escritor, retira-se a fantasmagoria de um novo léxico, um estilo, a partir de todo o confluir de sintaxe e palavras na esfera de uma narração de carnaval:

Sabe-se que a língua é um corpo de prescrições e hábitos, comum a todos os escritores de uma época. Isso que a língua é como uma Natureza que passa inteiramente através da palavra do escritor, sem, no entanto, dar-lhe nenhuma forma, sem sequer alimentá-la: é como um círculo abstrato de verdades, fora do qual somente começa a se depositar a densidade de um verbo solitário. (...) O escritor nada retira dela, literalmente: a língua é antes para ele como uma linha cuja transgressão designará talvez uma sobrenatureza da linguagem: é a área de uma ação, a definição e a espera de um possível. (...) A língua está pois aquém da Literatura. O estilo está quase além: imagens, um fluir, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos da sua arte.(Roland Barthes - O grau Zero da Escrita, p. 9 e 10).

Aqui se define o recôndito estilo do narrador, a organização das idéias a fluir pela sintaxe estável da língua. Outro fator que se acrescenta desta frase é a mescla da intenção do conteúdo que o narrador nos desvela com a sua forma, o primeiro sentido de metalinguagem: as cinqüenta mil pessoas que gritam não podem ser observadas aos olhos, mas através de uma dedução que não se deixa de fazer pelos olhos e até uma percepção dos ouvidos. Algo do narrador apenas sente a presença, um sentido do homem que observa, assim como os instrumentos são descritos em movimento sem as pessoas e estas, associadas a coisas na imagem por um paralelismo impróprio. Acrescenta-se a isso o artifício revisto em pessoas que gritam, descritas num único instante do seu ser. A narrativa termina por contemplar três dimensões: a participação do personagem-enunciador naquele ambiente do carnaval, a gramática e o estilo da enunciação.

(...)

A gramática reforça o sentido da parte de duas maneiras: primeiro, a ordem indireta, a ação carnavalesca toma a primazia na oração – o gritar- e depois, quem o faz, assim como o rufar dos tambores e o zabumbar dos bombos. Auxilia-nos outro detalhe à aplicação do estilo: no plano real, à vista do narrador-personagem, são os foliões que praticam o ato de tocar os instrumentos; as coisas não se tocam sozinhas; porém, no plano textual ocorre a ambiguidade de tambores e bombos serem sujeitos ou objetos de um sujeito indeterminado. Abarca-se a aplicação da literatura como ruptura entre o pensamento e a linguagem.

(...)

Os tambores e os bombos podem ser percebidos como sujeitos, pois os sons pertencem a eles. Zabumbar: “causar abalo ou perturbação dos sentidos (verbo intransitivo) e rufar; “produzir rufo (verbo intransitivo). Há um falso paralelismo na contradição de que as coisas (que no plano fantástico da linguagem podem ser agentes), pelo menos, não o podem junto às pessoas. Neste fazer literário, o narrador torna isto um fato um traço estrutural, na cadência da simetria. Por outro lado, na última oração, onde certamente as pessoas são sujeitas, por força de estilo há também um desnível, se nas antecedentes os sujeitos forem indeterminados. Tudo isto reproduz a magia do animismo, com o diferencial carnavalesco da interseção das coisas com as pessoas. No caminho extralingüístico notamos que a experiência do carnaval não se narra ou não se emprega sob a ótica do realismo comum, mas está de encontro a uma linguagem discursiva, natural, pois transforma a objetividade das coisas em realismo mágico.
(...)

Fragmento retirado da monografia "Interseções de frações na fantasia da literatura e do carnaval de um eu na multidão".

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