sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Como eram os cordões? - "Cordões"

 João do Rio é autor do conto "Cordões". Apresenta não só como eram essas expressões populares do carnaval mas também o seu ritmo e seu "fôlego" na linguagem, no jeito de escrever. Os Cordões foram também essa expressão de arte do carnaval pobre, de poucos recursos. Essa cultura, como os grupos de acesso, traz a arte, não da imitação da realidade ( essa orgia de luxo barato e inútil) mas (a arte) dos fluxos selvagens de "pobres" fragmentos da realidade e também da sociedade.

PARTE I


Oh! abre ala!

Que eu quero passá,
Estrela d'Arva
Do carnavá!

Era em plena rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berra vampilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à rua Direita danças sem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem 50.000 pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz d'açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividecia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetes, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz "auer", pelas vermelhidões de incêncio e as súbitas explosões azuis e verdes de fogos de bengala; era como que arrepiada pela corri da diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas por táteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d'água, cheios de confete; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto da promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela, policromada de serpentinas e confete, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no carnaval.

Há duas coisas
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E batalhão navá!

De repente, numa esquina, surgira o pavoroso "abre alas", enquanto, acompanhado de urros, de pandeiros, de "xequeres", um outro cor dão surgia.

Sou eu! Sou eu!
Sou eu que cheguei aqui
Sou eu Mina de Ouro
Trazendo-nos sobogari.

Era intimativo, definitivo. Havia, porém, outro. E esse cantava adulçorado:

Meu beija-flor
Pediu para não contar
O meu segredo
A iaiá.
Só conto particular
Iaiá me deixa descansar
Rema, rema, meu amor
Eu sou o rei do pescador.

Na turba compacta o alarma correu. O cordão vinha assustador. À frente um grupo desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face lustrosa como pixe, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro. Em seguida gorgolejava o grupo vestido de vermelho e amarelo com lentejoulas de ouro a chispar no dorso das casacas e grandes cabeleiras de cachos, que se confundiam com a epiderme num empastamento nauseabundo. Ladeando o bolo, homens em tamancos ou de pés nus iam por ali, tropeçando, erguendo archotes, carregando serpentes vivas sem os dentes, lagartos enfeitados, jabotis aterradores com grandes gritos roufenhos. Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de confete o meu companheiro esforçava-se por alcançar-me.

— Por que foges?
— Oh! estes cordões! Odeio o cordão.
— Não é possível.
— Sério!

Ele parou, sorriu:

— Mas o que pensas tu? O cordão é o carnaval, o cordão é a vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem por sobre a belbutina e o reflexo discrômico das lentejoulas tradições milenares; cada preta bêbeda, desconjuntando nas tarlatanas amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Byblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do Rumor, de os respeitar, entoando em seu louvor a "prosódia" clássica com as frases de Píndaro — salve grupos floridos, ramos floridos da vida... Parei a uma porta, estendendo as mãos.

— É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das cefalgias e do horror?

— Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da Humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas... Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos, ou esse pesadelo dos três dias gordos intitulado — máscaras de espírito?

Mas o carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glófredria ou o Bumba meu boi, se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de São Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos. Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.

Quantos cordões julgas que há da Urca ao Caju? Mais de duzentos! E todos, mais de duas centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição religiosa da dança, de um costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil...

— Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confete e velhas serpentinas varridas de uma sacada. Atrás de mim, todo sujo, com fitas de papel velho pelos ombros, o meu companheiro continuou:
— Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultural. Não há danças novas; há lentas transformações de antigas atitudes de culto religioso. O baila do clássico das bailarinas do Scala e da Ópera tem uma série de passos do culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da reverência sacerdotal, e o cake-walk e o maxixe, danças delirantes, têm o seu nas cedouronas correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da África. A dança saiu dos templos; em todos os templos se dançou, mesmo nos católicos.


O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava a desconfiar da sua razão. Ele, entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:

— O carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem coroado de pâmpanos e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abrem-se; os instrumentos rugem; e estes três dias ardentes, coruscantes, são como uma enorme sangria na congestão dos maus instintos. Os cordões saíram dos templos! Ignoras a origem dos cordões? Pois eles vêm da festa de Nossa Senhora do Rosário, ainda nos tempos coloniais. Não sei por que os pretos gostam da Nossa Senhora do Rosário. Já naquele tempo gostavam e saíam pelas ruas vestidos de reis, de bichos, pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à casa do vice-rei a dançar e cantar. De uma feita, pediram ao vice-rei um dos escravos para fazer de rei. O homem recusou a lisonja que dignificava o servo, mas permitiu os folguedos. E estes folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades do interior.

Havia uma certa conexão nas frases do cavalheiro, que me acompanhava; mas, cada vez mais receoso da apologia, eu andava agora quase a correr. Tive, porém, de parar. Era o Grêmio Carnavalesco Destemidos do Inferno, arrastando seis estandartes cobertos de coroas de louros. Os homens e as mulheres, vestidos de preto, amarelo e encarnado, pingando suor, zé-pereiravam:

Os roxinóis estão a cantar
Por cima do caramanchão
Os Destemidos do Inferno
Tenho por eles paixão.

E logo vinha a chula:

Como és tão linda!
Como és formosa!
Olha os Destemidos
No galho da rosa.

— Como é idiota!
— É admirável. Os poetas simbolistas são ainda mais obscuros. Ora, escuta este, aqui ao lado.

Vinte e sete bombos e tambores rufavam em torno de nós com a fúria macabra de nos desparafusar os tímpanos. Voltei-me para onde me guiava o dedo conhecedor do Píndaro daquele desespero, e vi que cerca de quarenta seres humanos cantavam com o lábio grosso úmido de cuspo, estes versos:

Três vezes nove
Vinte e sete
Bela morena
Me empresta seu leque
Eu quero conhecer
Quem é o treme terra;
No campo de batalha
Repentinos dá sinal da guerra.

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